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segunda-feira, 14 de março de 2011

Que é fé e quem é o fiel? Qual a diferença entre o fiel e o filósofo?

Que é a fé e quem é o fiel? Qual a diferença entre o fiel e o filósofo?


Autor: SILVA, Jeane. Que é a fé e quem é o fiel? Qual a diferença entre o fiel e o filósofo? Publicado 17/06/2010 em http://www.webartigos.com/


APRESENTAÇÃO


Baruch de Espinosa, filósofo judeu, lança aos seus leitores um desafio: reler as Escrituras numa perspectiva filosófica, para, reinterpretando-as, propor uma análise ao modo moderno, ou seja, uma análise pelas causas; seguindo, assim, a proposta mecanicista daquela época que visava à explicação do funcionamento das coisas através da razão e não da superstição. Tal coisa desperta um profundo repúdio dos teólogos, que nutriam um preconceito contra a filosofia, acusando-a de impiedade. Nos escritos de Espinosa não há negação da existência de Deus, ou seja, ele não afirma o ateísmo, tão pouco o defende. O que há é a idéia de um Deus conhecido pela razão e percebido através de sua theofania na natureza, que só é passível de ser compreendida pelo homem no uso de sua racionalidade. A questão que aqui se estabelecerá diz respeito a um aspecto crucial em todas as religiões, a fé. No capitulo XIV de denominado: “O que é fé, quem e fiel, quais os fundamentos da fé e como se distingue da filosofia” do Tratado Teológico Político Espinosa se propõe a tratar, num primeiro momento, das definições de filosofia e, principalmente, a de fé realizando uma análise conceitual destes itens. Seu intuito é, desta forma, verificar em que estes conceitos se distinguem e se, de algum modo, se relacionam. Além do Tratado Teológico Político, observaremos a Bíblia no escopo de delimitar a fé segundo o referencial que a fundamenta. Uma vez que já foi demonstrado no capítulo XIII do texto referido que a obediência é a lição que a Escritura quer que os homens aprendam, pois não importa que sejam sábios, mas apenas obedientes, nota-se que ela se dá pela caridade. Poderemos perceber como o argumento que defende a obediência como o propósito da Escritura se transcreve em fé que, por sua vez, se mostra nas obras caridosas donde se pode reconhecer quem é o fiel e quem é o infiel. Com efeito, este artigo se deterá em analisar somente o texto citado, buscando nas referências bíblicas a fundamentação de suas teses, tal como o próprio Espinosa faz para justificar seus escritos. Não se pretende com isso deter os ataques que a teoria espinosana sofreu, mas apenas expor como este filósofo desenvolveu sua argumentação a respeito da fé, dos seus dogmas e atributos.


QUE É A FÉ E QUEM É O FIEL? QUAL A DIFERENÇA ENTRE O FIEL E O FILÓSOFO?


A Escritura é acessível para todo o povo judeu e não é necessário ter uma mente privilegiada para poder compreendê-la, visto que ela não está presa a compreensão e interpretação apenas dos profetas. Por estar acessível a toda mente, ela cai na sorte de toda e qualquer interpretação, inclusive do vulgo, que julga ser a sua compreensão a mais acertada e condizente da doutrina divina. É por causa das diversas e inúmeras interpretações que existem várias explicações para a Escritura, que é uma só. Mesmo os grupos religiosos a interpretam e a explicam do seu modo, isto é, como melhor lhes convêm. Outro fator que pode agravar, e sem dúvida agrava, a dessemelhança de interpretação é que o texto sagrado foi escrito por várias mãos, cada uma com um propósito pra seu tempo e se, antigamente, a Escritura era seguida a partir da compreensão do vulgo hoje ela é adaptada pela sua opinião. O ataque de Espinosa se foca na perseguição que as religiões fazem umas as outras, isto é, nas diferentes interpretações da Escritura. Não parece importar as obras dos fiéis de cada grupo, mas apenas se seguem a interpretação que sugerida, praticando assim apostasia; esta perseguição, por causa da desproporção da compreensão de cada grupo, é prejudicial ao Estado por ser a centelha de muitos conflitos. Desse modo o questionamento de Espinosa e fonte motora deste artigo é, se diante das diferentes interpretações acerca dos textos sagrados, e das “auto-nomeações” de cada grupo que se intitulam (assim como os hebreus se intitulam “escolhidos”) fiéis, como se poderia definir a fé e o fiel? Para Espinosa a fé, e por decorrência o fiel, se configuram em atos. Admitindo que tanto no Antigo quanto no Novo testamentos as Escrituras são lições de obediência, ele diferencia em que termos a obediência se dá em cada parte dessa divisão das Escrituras. No Antigo Testamento, quando os líderes e reis precisavam manter o povo dentro das regras morais que prescreviam, a obediência tinha forma de troca, isto é, era como houvesse entre o povo e Deus uma convenção de obediência, onde o povo se submetia a vontade de Deus e Deus abençoava o povo. No Novo Testamento a troca é substituída pelo desejo do conhecimento de Deus que só se dá através da fé, esse conhecimento sanaria o anseio pela salvação. No Antigo Testamento há uma submersão temerosa, enquanto no Novo Testamento há uma possibilidade de conhecer Deus, na figura do Cristo, através da fé. Como, então, se poderia ser um fiel à “moda espinosana”? Como praticar essa tal obediência onde a fé se demonstra? O mandamento de fé instituído por Jesus no Novo Testamento é conhecido como o mandamento do amor: “Este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amo.” (João 15:12). Ao tomar a definição de caridade que se pode observar no texto bíblico da Primeira Epístola aos Coríntios 13:1-3, “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda ciência; mesmo que tivesse toda fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” e a fé configurada na obediência como ponto de partida e ao conceber ainda o mandamento de Cristo, que era veículo do conhecimento divino, que é o amor ao próximo, conclui Espinosa: a fé se dá pela boa obra pela obra caridosa, tal como assevera Tiago “Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma.” (2:17). A fé só pode salvar através da obediência, só quem é obediente, e cumpre a caridade, independente da seita da qual faz parte, é fiel verdadeiramente, pois um homem só pode ser considerado ou não fiel pelas obras que pratica e não pela doutrina que professa ou pelos dogmas (não universais) que adere. Assim só o praticante das boas obras é fiel, enquanto quem pratica obras más é infiel, mesmo que vista toda a indumentária do que pratica a fé, tal como aponta Espinosa “Quem possui a caridade possui realmente o espírito de Deus” (2003; p217). Logo é possível conhecer Deus e seus atributos na medida em que se pratica a caridade para com os outros. Esses argumentos não são, de uma forma geral, decisivos, mas esclarecem o que Espinosa quer dizer a respeito do conhecimento de Deus através da observação e obediência de suas leis. Os homens considerados deveras ofensivos não são aqueles que vão contra esta ou aquela doutrina, mas os que perseguem os bons somente por não professarem a mesma doutrina que eles. Amar a justiça e a caridade é, para Espinosa, o ponto conceitual que define o fiel. Desse modo aquele que persegue o fiel, não amando nem a justiça e nem a caridade é o infiel. Ao tratar sobre os dogmas da fé, Espinosa garante que estes não precisam ser verdadeiros ou mesmo piedosos e, ainda se forem, alguém pode, sem grande prejuízo, ignorá-los. Os dogmas da fé têm uma função específica e, por isso, delimitada: eles devem necessariamente levantar o ânimo à obediência, incitando o cumprimento da caridade. Deste modo, fundamentado no amor dispensado ao próximo, o fiel estará em Deus e participará de sua caridade. Segundo Espinosa, um mesmo dogma pode mover dois homens a caminhos diferentes, mas apenas dogmas de uma fé universal chamada por ele de católica, levam de maneira não contingente, à obediência. Assim indiferente ao modo que ajuíze tais dogmas, as pessoas serão julgadas fiéis ou infiéis pelos seus atos. Logo, só pertencem a fé universal , independente de que livro ou boca saiam, os dogmas que levam à obediência a Deus. Vamos agora, no escopo reconstruir o argumento filosófico de Baruch de Espinosa a respeito dos dogmas da fé universal e enumerar, de forma sucinta e geral, os sete dogmas da fé universal dos quais quaisquer outros derivam logicamente. O primeiro dogma se configura na existência de Deus: é preciso que se acredite ou conheça Deus para que daí se possa obedecê-lo e reconhecê-lo como juiz. O segundo dogma diz respeito a recusa de outros deuses, isto é, só existe um Deus. O terceiro dogma afirma que Deus está em todo lugar e tudo sabe, só assim pode julgar com autoridade suprema. O quarto dogma da fé universal assegura que todos devem obediência a Deus, que não a dispensa a ser algum, pois Ele domina tudo o que existe não por alguma norma, mas através de seu poderoso consentimento. O quinto dogma se conforma no mandamento da caridade, onde obedecer a Deus é amar o próximo. O sexto se funde na salvação, e diz que os que obedecem serão salvos enquanto os que não obedecem estão condenados. O sétimo e último dogma proposto por Espinosa determina que todos os homens pecam, e é justamente isso que justifica o credo na misericórdia divina, além de mencionar Cristo como um homem que amou a Deus com furor por causa da misericórdia divina. Estes setes dogmas devem ser cumpridos a fim de obedecer a Deus, independentemente do que cada um pensa sobre Ele. Pouco importa, para a prática da obediência, de acordo com Espinosa, o modo como as pessoas ajuízam o agir de Deus, como sua ação se potencializa ou manifesta. O que importa é a maneira como Deus abençoa o bom homem e amaldiçoa o mau. Cada um pode, bem como se faz com a Escritura, adequar os dogmas da fé universal à sua capacidade de entendê-los e interpretá-los, de modo que todos possam ter ciência e obedecer a Deus pelo seu próprio entendimento, como se pode conferir no “Tratado Teológico Político: “... tal como outrora a fé foi revelada e escrita de acordo com a capacidade de compreensão e as opiniões dos profetas e do povo de então, assim agora cada um deve adaptá-la às suas opiniões, para que deste modo a abrace sem reservas mentais nem hesitações.” (Espinosa, 2003; p.221) Não é, pois, pelos argumentos, mas pelas obras justas e caridosas que se demonstra melhor fé e o melhor fiel. Esse princípio de fé pela obediência, e de obediência pela caridade, é a melhor doutrina para uma sociedade e faria acabar com tantos conflitos que ocorrem por causa das perseguições religiosas. O modo pelo qual se apresenta a distinção entre a fé a filosofia se conforma na própria distinção dos objetos de cada uma. A fé, segundo Espinosa, que se deduz da história e principalmente das Sagradas Escrituras, se configura no objeto da obediência, no cumprimento dos mandamentos de acordo com a observação dos dogmas da fé universal; a filosofia é deduzida da natureza e se configura no objeto da verdade. A fé permite que cada um pense e aja filosoficamente a respeito de qualquer coisa sem por isso estar errado em seus pensamentos, condenando com força igual aqueles que promovem a discórdia entre os povos por causa de suas convicções. A distinção entre fé e filosofia é que a fé se ocupa da obediência enquanto a filosofia da verdade. Tal distinção entre o fiel e o filósofo fica também esclarecida se o fiel é o praticante da fé, que se fundamenta na obediência ao mandamento de Deus. Tal obediência se manifesta no amor ao próximo; o filósofo é um investigador que, por isso, se difere do vulgo, visto que parte das coisas da natureza em direção à verdade deduzida e não revelada.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Se perguntarmos a um cristão leigo o que é a fé, ele certamente responderá que é a capacidade ou mesmo a atitude de crer em algo não explicável através da razão. Outra explicação também comum pode ser dada: ele vai apenas dizer que é crer naquilo que não se pode ver. Ao procurara ainda de forma mais atenta, poderemos encontrar alguém que defenda de forma mais fervorosa a mesma definição, contudo o que se pode perceber é que estas são os conceitos mais correntes e, portanto mais populares. Entretanto Espinosa vem salientar que a fé não se dá pela palavra, mas pela ação, como ele mesmo pode interpretar das Escrituras. Poder-se-ia pensar que porque Espinosa disse que filosofia e fé são coisas distintas e não se relacionam que o filósofo não pode pensar sobre a fé ou o fiel sobre a filosofia. Ele mesmo mostra que isso é possível quando o próprio, judeu, se detém na análise filosófica dos textos sagrados e ao afirmar que só pela racionalidade e através da luz natural é possível ao homem conhecer Deus verdadeiramente, isto é pela prática de sua justiça, pela caridade e pela sua manifestação. A posição de Espinosa a respeito da fé, da sua fundamentação e prática, não poderia ser defendida por nenhuma religião notoriamente popular. As religiões não abrem mão de que o fiel professe sua doutrina, enquanto Espinosa sugere que seja qual for a denominação religiosa de cada um o mesmo deve praticar boas obras. Com certeza não deve ter agradado às instituições religiosas. Daí, podemos perceber porque Espinosa foi amaldiçoado e expulso da comunidade judaica e por que a leitura de seus textos não é recomendada em alguns seminários cristãos. O que, sem dúvida, marca a teoria de Baruch de Espinosa é que ele, pertencente a uma corrente religiosa tradicional, pelo menos até ser retirado dela, abomina qualquer espécie de fanatismo e perseguição. Espinosa defende que cada homem deve ser conhecido e julgado por suas obras e não pela doutrina que adere e publicamente professa. Daí pode-se concluir, seguramente, que se o tempo gasto com a tentativa de conversão para tal e tal denominação religiosa fosse usado por quem procede desta forma na caridade e, portanto, no amor ao próximo, algumas coisas que incomodam tantos os fiéis quanto os infiéis deixariam de existir.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BÍBLIA. Bíblia Sagrada. São Paulo. Editora Ave Maria, 134ª ed., 2000. ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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